segunda-feira, 19 de outubro de 2009

CICLO CINEMA E DEBATE 2009



One Week (1920) .........................................04 de Novembro
Buster Keaton & Edward Cline
Moderadora: Isabel Baraona

Dreams That Money Can Buy (1947)..........11 de Novembro
Hans Richter
Moderador: Nelson Guerreiro

Fanny & Alexander (1982).........................18 de Novembro
Ingmar Bergman
Moderadora: Margarida Tavares

O Sacrifício (1986)........................................25 de Novembro
Andrei Tarkovski
Moderador: Rodrigo Silva

Caché (2005)..............................................02 de Dezembro
Michael Haneke
Moderador: José Carlos Teixeira


todas as SESSÕES terão lugar no
auditório do edifício ped. 1, às 17h.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Ciclo de Cinema e Debate 2008-09

O Ciclo de Cinema e Debate “10 décadas de cinema: dos anos 10 a 2000”, pretende divulgar grandes clássicos do cinema, filmes de referência que “falam” em qualquer época. Foi seleccionado um filme por década e convidada uma personalidade de relevo da nossa cultura para animar o debate que se segue após a projecção de cada filme.


década de 10
22 de Outubro de 2008
Intolerância (Griffith), 1916, 177 m.
Moderador: João B. Serra (historiador)

década de 20
29 de Outubro de 2008
A Caixa de Pandora (Pabst) 1929, 104 m.
Moderadora: Maria Lúcia Lepecki (ensaísta)

década de 30
5 de Novembro de 2008
Frankenstein (J. Whale) 1931, 68 m.
Moderador: Alexandre Quintanilha (Biólogo)

década de 40
3 de Dezembro de 2008
Relíquia Macabra (J. Huston) 1941, 96 m.
Moderador: Laborinho Lúcio (magistrado)

década de 50
12 de Novembro de 2008
Macbeth (O.Welles) 1948, 87 min.
Moderador: José Pedro Serra (prof. ensino superior)

década de 60
26 de Novembro de 2008
West Side Story (R. Wise/J. Robbins) 1961, 145 m.
Moderador: Vasco Wellenkamp (coreógrafo e bailarino)

década de 70
19 de Novembro de 2008
Alice in the Cities (W. Wenders) 1974, 107 m.
Debate livre

década de 80
10 de Dezembro de 2008
Apocalypse Now (F. F. Coppola) 1979, 153 m.
Moderador: Garcia Leandro (general na reserva)

década de 90
14 de Janeiro de 2009
Onde Jaz o teu sorriso? (Pedro Costa) 2001, 102 min.
Moderador: José Neves (arquitecto)

2000
21 de Janeiro de 2009
Cartas a uma Ditadura (Inês de Medeiros) 2008, 60 m.
Moderadora: Irene Pimentel (historiadora)

CICLO DE CINEMA E DEBATE 2007


O ciclo de cinema e debate deste ano lectivo é dedicado ao tema ‘PENSAR ATRAVÉS DAS IMAGENS’. Sessões no edifício pedagógico 1, auditório

1ª SESSÃO - Verdade ou Mentira

título original : Shattered glass
Realização: Billy Ray
Ano: 2003
Duração: 96 min.


Exibido a 12 de Novembro de 2007

Debate conduzido por Paulo Martins
Tema do debate : A CONSTRUÇÃO DO REAL



O mundo da comunicação social tem como base a representação do real. Neste caso concreto, uma representação que se pretende verdadeira. Mas será que é mesmo assim?

Este filme baseia-se em factos reais, narrando a história do jornalista americano Stephen Glass, um jovem que tinha 24 anos quando começou a trabalhar na revista “The New Republic”. Aí permaneceu três anos, entre 1995 e 1998. Entrou como simples estagiário e rapidamente se transformou num brilhante cronista, com artigos de investigação sobre temas actuais. Mas a veracidade de uma das suas reportagens foi posta em causa. Iniciou-se um processo, envolvendo os superiores hierárquicos, colegas e amigos. No final, descobriu-se que 27 dos 41 artigos que publicara eram falsos, quer na sua totalidade, quer parcialmente. Alguns eram completamente inventados. O choque foi grande…

Que tipo de motivação leva uma pessoa a mentir, a inventar fontes e a falsear histórias? A fama? A tentativa de se destacar num mercado competitivo? Mostrar a todos que era melhor que os colegas? Construir a auto-estima?

Em relação à revista e aos seus editores as consequências também foram graves. Perdeu a confiança dos leitores e tornou claro ao público que muitos dos artigos são escritos por estagiários. A credibilidade foi afectada, sendo um duro golpe para uma revista lida no avião presidencial “Air Force One”.

O mundo das Artes e da criatividade é competitivo. As intrigas e invejas abundam. Curiosamente, quem desvendou este caso foi uma outra revista, onde os jornalistas e estagiários, apesar da competição, resolveram trabalhar em equipa.

No final, há uma interrogação que se mantém. Qual a verdadeira motivação individual do artista, neste caso um escritor de crónicas jornalísticas: provocar? Representar a realidade? Transmitir a sua visão dos factos, independentemente da sua veracidade? Tentar reproduzir a beleza ou a fealdade que nos rodeia? Utilizar a arte como denúncia e, nesse caso, ao serviço de quem? Dos nossos interesses, ou da própria realidade? E, por fim, uma pergunta essencial a qualquer autor: que representação fazemos nós próprios de nós mesmos? E em que medida essa representação pessoal afecta a percepção da realidade que nos rodeia e a que representaremos posteriormente?

Lanço estas (e outras perguntas que surgirão por arrastamento) para o debate de hoje. Mas faço uma advertência: vale a pena ver o filme para podermos equacionar melhor as nossas respostas. Um artigo publicado em 2005 na revista Journal of Communication Inquiry, por Matthew C. Ehrlich, intitulado Shattered Glass, Movies, and the Free Press Myth, pode, também, ajudar-nos a encontrar boas pistas de análise.

2ª SESSÃO - A Costa dos Murmúrios

Realização: Margarida Cardoso
Ano: 2004
Duração: 115 min.

Exibido a 15 de Novembro de 2007


Convidada: Margarida Cardoso
Debate conduzido por Maria Madalena Gonçalves
Tema do debate : ADAPTAÇÃO: DO LIVRO AO FILME


- Um livro é um livro e um filme é um filme. Cada um vale por si. Partindo desta evidência, gostaria de começar por perguntar o que é que a realizadora Margarida Cardoso viu no livro da escritora Lídia Jorge capaz de ser transposto para o ecrã? Em seguida, gostava que nos dissesse o que é que excluiu deliberadamente do livro e reteve para núcleo duro do seu texto fílmico.
- Tendo sido sensível à tentativa de conciliação entre memória e realidade (que me parece ser uma questão crucial a respeito da guerra colonial presente tanto no livro como no filme), pergunto-lhe se tecnicamente resolveu esta questão servindo-se da narração off de Evita Lobo.
- Haverá, certamente, das várias cenas filmadas uma que lhe diz mais do que as outras. Qual e porquê?
– Proponho que nos concentremos na cena do tiro às aves (a cena dos flamingos). Uma vez que muitos dos estudantes aqui presentes estudam “som e imagem”, aproveitava a ocasião para lhe pedir que nos falasse dos códigos da mise-en-scène utilizados na filmagem desta cena: iluminação, enquadramento, disposição dos actores, movimento da câmara, etc… Como utilizou o texto de Lídia Jorge neste particular?
– Uma última questão que lanço para o debate. Há quem diga que A Costa dos Murmúrios apresenta algumas afinidades com Os Verdes Anos[1] e Hiroshima, mon amour[2].



[1] Os Verdes Anos, realizador Paulo Rocha, estreado em 1963.
[2] Hiroshima, mon amour, realizador Alain Resnais, estreado em 1959.

3ª SESSÃO - Perigo na Noite

título original: Frenzy
Realização: Alfred Hitchcock
Ano: 1972
Duração: 118 min.

Exibido a 19 de Novembro de 2007


Debate conduzido por João B. Serra
Tema do debate : HITCHCOCK: HUMOR E MALDADE


Frenzy é o 55º filme de um cineasta que realizou, entre 1925 e 1976, nada menos que 56 filmes. Alfred Hitchcock nasceu em 1889 e morreu em 1980. Londrino, foi o autor do primeiro filme falado britânico. Em 1939, emigrou para os Estados Unidos, onde se consagrou como figura cimeira da indústria cinematográfica de Hollywood, criando a sua própria empresa produtora de filmes. No final da década de 50 e anos 60, depois de ter realizado Janela Indiscreta (1954), foi “descoberto” pelos críticos e cineastas da Nouvelle Vague francesa (Claude Chabrol, Eric Rohmer, François Truffaut), reforçando o seu prestígio na Europa. Alguns dos seus filmes antológicos são desse período: A Mulher que Viveu Duas Vezes (1958), Psico (1960), Os Pássaros (1963), Marnie (1964), Cortina Rasgada (1966).

Em 1970 voltou a Londres para rodar Frenzy. Poucos anos antes, Hitchcock tinha começado a trabalhar no argumento de um filme-documentário sobre um “serial killer” londrino que seduzia as mulheres antes de as matar, Neville Heath. O projecto deste fime cujo título seria Caleidoscópio incluía muitas cenas realistas, filmadas à mão, e a Universal rejeitou-o. Sucede que o primeiro título de Caleidoscópio fora precisamente Frenzy.

Frenzy tem por base os actos de um “serial killer” que viola as suas vítimas e as asfixia com a sua própria gravata. Covent Garden propiciou a Hitchcock as mais marcantes cenas de exterior de Frenzy. Como este mercado tradicional da cidade iria desaparecer pouco depois, podemos ver nesta escolha não só a homenagem que o realizador quis prestar a seu pai (vendedor de frutas e hortaliças em Covent Garden) como a transposição para este filme do intuito documental previsto para o filme recusado.
Hitchcock integrou esta produção não apenas no ambiente da cidade de Londres – com diversas referências aos seus emblemas urbanos – o Tamisa, a Tower Bridge, com as suas pontes basculantes – mas no sistema britânico de produção cinematográfica, recorrendo, por exemplo, a actores com experiência de palco mas não a estrelas do cinema.
O universo hitchcockiano é bem reconhecível neste penúltimo filme de uma longa carreira. Lá está, em doses específicas, uma história policial, a maldade humana, o humor carregado (humor negro), o jogo de sentimentos (o romance), o suspense. Mas está lá, sobretudo, um conjunto de procedimentos técnicos e artísticos que fizeram de Hitchcok um dos mestres da narrativa cinematográfica, e uma atenção aos pormenores que fazem dos seus filmes inesquecíveis momentos de mistério e divertimento.

Salientarei alguns desses procedimentos técnicos e alguns desses momentos inesquecíveis.
Quanto aos primeiros:
- a presença de Hitch no comício junto ao Tamisa.
- a violação e estrangulamento de Mrs. Blaney, num reduzidíssimo espaço de um escritório.
- a “descoberta” de Mrs Blaney pela secretária.
- o encontro entre Babs e Rusk, depois de ela sair do Pub.
- a despedida a Babs.
- a falta do alfinete de gravata.
- Rusk às voltas com o cadáver de Babs (140 takes).
- a sentença do tribunal.
- o desmarcaramento do “serial killer”.


Quanto aos segundos (em registo de humor negro):
- referências aos rins e fígado das vítimas do Estripador por um dos espectadores da recolha do primeiro cadáver.
- relação entre assassínios em série e turismo feitas pelos dois cavalheiros no pub.
- as referências às batatas e às uvas (“peal me the grape”, as uvas que acompanham a perdiz).
- um assassino que palita os dentes com um alfinete de gravata.
- as refeições confeccionadas por Mrs Oxford.
- a quebra de gressinos operada por Mrs Oxford enquanto ouve o relato do marido sobre a forma como o assassino retirou o alfinete da mão em “rigor mortis” da sua vítima.
- a teoria de que, apesar de tudo, o casamento defende melhor os indivíduos: os dois casais do filme (Oxford e Forsythe), embora não harmoniosos, não incorrem nos riscos das personagens não casados: um é preso por um crime que não cometeu, outro é um psicopata, duas são assassinadas e o espectador teme pela secretária de Mrs. Blaney.
- que pode esperar Blaney depois de reconhecido o verdadeiro culpado? um jantar de pato com espesso molho de cerejas preparado por Mrs Oxford…

4ª SESSÃO - Fahrenheit 451

Realização: François Truffaut
Ano: 1966
Duração: 112 min.

Exibido a 22 de Novembro de 2007


Debate conduzido por Rodrigo Silva
Tema do debate : O CONTROLO DA REPRESENTAÇÃO



Cinco questões sobre “Fahrenheit 451”:

1. Questão do totalitarismo e das sociedades de controlo, da biopolítica. A liberdade é asfixiada pelos sistemas simbólicos, sistemas de transmissão, de mediação, e pelo uso que os aparelhos de Estado fazem deles. A fabricação do consentimento através da propaganda é disseminada por todos os gestos do quotidiano; tudo foi invadido porque tudo foi integralmente apropriado pela mecânica implacável da vigilância generalizada e pelo policiamento securitário, que converteu o espaço público, o espaço da acção livre, num espaço codificado pela máquina administrativa e burocrática.

2. Questão da memória colectiva e da consciência histórica: a ordem monolítica e massificada das instituições colectivas controlam os sistemas de representação, fazendo valer apenas uma versão da vida colectiva e uma visão do mundo, sem pluralidade, sem lugar para a singularidade do indivíduo. Deixa de haver histórias individuais, mas apenas a dissolução do indivíduo enquanto elemento sacrificial de um colectivo – destruição da memória e das recordações de cada um. Desaparecem os gestos e práticas que constituem a individuação como singularidade idiomática.


3. Questão do tempo e do espaço: um presente eternizado, um limbo suspenso, sem passado não há projecção no futuro. Uniformização de todos os lugares, que estão mapeados, cartografados e coreografados de acordo com a mise en scène idealizada do poder - asséptica, higienista, funcionalizada, normalizada. Amnésia organizada e perda da memória numa sociedade que esqueceu a negatividade e a tragédia da história. Absolutização e imersão num presente ubíquo que é o da realidade construída e mantida pelos dispositivos do poder.

4. Questão das formas de entertainment e distracção organizada como forma de anestesia apática da consciência crítica: há uma estranha familiaridade com cenários e formas de vida de hoje e que tem a ver com as distopias forçadas pelo século XX. O futurismo da ficção científica antecipa muitas das características embrionárias da civilização tecnológica (o filme é de 1966).

5. Questão da possibilidade da resistência, da subversão. Reinvindicação como dissidência criadora: Montag como o homem que recupera o espírito crítico (pensar por si próprio, a partir da memória dos que o fizeram escrevendo livros) e a autonomia do pensamento através da leitura (a solidão e o distanciamento que abrem o espaço da insubmissão e da insurreição poética. O protagonista acabará por se tornar um dos “homens-livro”). Montag rejeita e deixa de aceitar o conformismo e o consentimento, porque a memória dos livros é o recurso para a verdadeira liberdade que é a liberdade interior - numa sociedade onde já não há liberdade exterior porque a exterioridade, a vida pública, está inteiramente refém das palavras de ordem, das enunciações e visibilidades que são programadas e que confiscaram o espaço do possível. O pensamento, a leitura: práticas da insubmissão.

5ª SESSÃO - Images of the world and inscription of war

Título original: Bilder der welt und Inschrift des Krieges
Realizador: Harun Farocki
Ano: 1988
Duração: 75 min.

Exibido a 26 de Novembro de 2007


Debate conduzido por Susana Duarte
Tema do debate : A MONTAGEM: ENTRE A PALAVRA E A IMAGEM


Imagens do mundo e a inscrição da guerra reúne aspectos cruciais da teoria e prática fílmica de Farocki. Nesta sua obra, há dois grupos de imagens fundamentais, retomadas em sucessivos reenquadramentos, que condensam as preocupações do filme, clarificando a convocação das outras séries de imagens: o das fotografias aéreas tiradas pelos bombardeiros aliados americanos, em 1944, e o correspondente ao álbum de Auschwitz, com fotografias tiradas por um SS, na rampa do campo, ambos produtos de uma tecnologia incorporada a uma maquinaria calculada de morte e aniquilação. Neles converge o que a banda de imagens e de palavra vai sublinhando e dando a ler através da alternância entre as imagens dos aparatos de medição (militares, científicos, industriais) e as imagens produzidas por esses meios, a saber, que o propósito de produção destas imagens-técnicas, prefigurado pela fotografia mas estendendo-se para além dela, independentemente dos seus fins científicos, militares, forenses, ou estéticos, foi não só registar e preservar, mas também ocultar e destruir.
Em Abril de 1944, pilotos americanos sobrevoam a Silésia à procura de uma fábrica de armamentos e registam fotografias de reconhecimento. De regresso a Inglaterra, os analistas identificam os alvos industriais, mas não vêem os telhados dos barracões e as câmaras de gás de Auschwitz. Nas fotografias aéreas de Auschwitz, em que o campo de extermínio na imagem só é visível em 1977, estamos perante imagens que se organizam em torno de uma zona cega, o que nos permite confirmar que “Imagens do mundo e a inscrição da guerra” é um filme sobre a manifestação de uma desadequação entre o olho e os dispositivos tecnológicos de visão, sobre a relação da visão natural com uma dimensão de opacidade e invisibilidade inscrita no visível artificialmente construído. A fotografia aérea é uma imagem-técnica. Apesar de ser um registo analógico aponta já, com o seu sistema em grelha, para o modo digital, como notou Vilém Flusser. Os seres humanos individuais ficam fora da grelha, e só o ornamento da sua existência de grupo fica registado: por exemplo, quando se alinham nos pátios para a selecção ou a chamada. Com efeito, a visibilidade permitida pelo alcance óptico da fotografia aérea esbarra com uma dissimulação muito mais radical do que a encetada pelo inimigo, para evitar, segundo uma expressão de Paul Virilio, que “o percebido seja sinónimo de imediatamente perdido” – aquela que resulta de uma incapacidade para ver o que a fotografia objectivamente contém, mas o olho não está preparado para reconhecer.
Farocki está interessado no modo como a câmara se tornou um elemento inseparável do equipamento destruição. O que é preservado na fotografia de Auschwitz é, ao mesmo tempo, uma imagem da destruição efectivamente consumada e da destruição que não chegou a ter lugar e que a poderia ter evitado.
O filme transmite, assim, um sentimento simultaneamente de perigo e de impotência em relação à óptica global de controlo do território: se a destruição implica que haja imagem, a destruição impedida dificilmente encontra a sua resposta numa terra sob vigilância, pois não há resposta, nem intervenção, ou crítica, em relação à destruição, quando o olhar e o pensamento são meras funções de máquinas que determinam, em articulação com a ciência e os fins militares, o que faz sentido investigar. Por sua vez, a imagem da mulher, na chegada ao campo, é tirada por um SS. Referir, como o faz a voz off do comentário, que a fotografia parece resultar de um impulso de fascinação – um homem que olha uma mulher e resgata a sua beleza para a posteridade – e, que, juntamente com o olhar da mulher, evoca o mundo exterior aos campos, permite ao filme sublinhar que o significado desta imagem se joga precisamente na distinção entre o curso normal da vida antes deste momento e as disposições que regulam o campo e ditarão a morte desta mulher. O dispositivo fotográfico que a fixa e preserva, no qual o fotógrafo se incui, não se distingue do campo de extermínio que entende a sua vida como supérflua. A fotografia inscreve-se na máquina burocrático-militar de destruição nazi. Vale a pena chamar aqui a atenção para a aproximação que Farocki estabelece, pela montagem, entre máquinas de visão usadas pelos carrascos e os equipamentos e autómatos de produção industrial, reforçando mais uma vez a disfunção entre o olho e o aparato: ambos são sem subjectividade, reduzidos a meros procedimentos de verificação técnica e operacional do funcionamento das coisas, eliminando o papel desempenhado pela visão natural no seu interior[i].

As duas imagens analisadas encarnam o modo técnico da escrita histórica e Farocki fá-las contrastar, já no final do filme, sobretudo através do comentário, com uma outra categoria de imagens, as que resultam da narração feita pelos dois prisioneiros, Rudolf Vra e Alfred Wetzler, que conseguiram fugir de Auschwitz e dão conta da realidade do campo através da sua condição física de testemunhas oculares. Esta aproximação final entre estes dois tipos de narração retroage sobre as várias direcções de movimento do filme que os dois grupos de imagens de Auschwitz representam ao mesmo tempo, e acrescenta-lhe mais uma, de contornos fundamentais: a fotografia, enquanto ferramenta matemática de conhecimento operacional e cálculo sobre o mundo, preconizadora das contemporâneas imagens numéricas, constitui um ponto de viragem na história humana, em que ambos os tipos de narração, ambos os tipos de imagens, se mostram inadequados. Não é possível optar por uma ou outra, pela imagem ou pela palavra, antes tem que se tentar estabelecer uma relação entre as duas. Esta ideia, reconhecemo-la em obra no próprio filme: o método de escrita de Farocki constitui-se a partir desta diferença, entre texto e imagem, sendo na sua manifestação que o filme acontece. Parafraseando o próprio realizador, uma imagem pode elucidar a outra, dar-lhe alguma validade experiencial; uma palavra - Aufklarung, por exemplo - transporta duplos e triplos sentidos, reúne várias coisas distintas, sugerindo, pelo seu potencial, conexões no mundo real, no material visual, na fábrica argumentativa do filme. No entanto, a linha dramatúrgica não está nem num sítio, nem no outro, está num outro lugar. Algures na mente de quem vê, nas imagens e representações mentais que a montagem, isto é, o entrelaçamento e os intervalos entre palavra e imagem, permite, nas conexões que são feitas de todas as combinações, na estrutura de loops que o filme propõe.[ii]



[i][i] A propósito do filme, Farocki afirma, numa entrevista a Thomas Elsaesser, que as imagens, fundamentais para a nossa cultura, estão a desaparecer: foram durante anos suportes perceptivos e conceptuais centrais e agora são uma mera concessão ao interface humano, pois as máquinas não precisam de imagens, podem fazer as suas visualizações e conceptualizações com cálculos matemáticos. Thomas Elsaesser aponta, por sua vez, para a possibilidade de ler aqui uma conexão histórica entre o fascismo e a realidade virtual: para ambos, o interface humano cai fora da equação enquanto irrelevância dispendiosa e embaraçosa. C.f. ELSSAESSER, Th. (1993), “Making the world superfluous: an interview with Harun Farocki”, in ELSSAESSER, T. (2004), Harun Farocki, Working on the sight-lines, Amsterdam: Amsterdam University Press: 177-189.

[ii] Ibid.
[iii][iii] A propósito do filme, Farocki afirma, numa entrevista a Thomas Elsaesser, que as imagens, fundamentais para a nossa cultura, estão a desaparecer: foram durante anos suportes perceptivos e conceptuais centrais e agora são uma mera concessão ao interface humano, pois as máquinas não precisam de imagens, podem fazer as suas visualizações e conceptualizações com cálculos matemáticos. Thomas Elsaesser aponta, por sua vez, para a possibilidade de ler aqui uma conexão histórica entre o fascismo e a realidade virtual: para ambos, o interface humano cai fora da equação enquanto irrelevância dispendiosa e embaraçosa. C.f. ELSSAESSER, Th. (1993), “Making the world superfluous: an interview with Harun Farocki”, in ELSSAESSER, T. (2004), Harun Farocki, Working on the sight-lines, Amsterdam: Amsterdam University Press: 177-189.
[iv] Ibid.

6ª SESSÃO - Blade Runner

Realização: Ridley Scott
Ano: 1982
Duração: 117 min.

Exibido a 29 de Novembro de 2007


Debate conduzido por Luísa Arroz Albuquerque
Tema do debate : MEMÓRIA, IDENTIDADE E TECNOLOGIA


O longo plano – sequência inicial do filme – apresenta-nos Los Angeles em 2019. Lentamente vamo-nos aproximando da cidade, à medida que chaminés de grandes refinarias industriais explodem à nossa frente. Este lento plano inicial, que valeu a “blade runner” o título da crítica de “blade crawler”, é entrecortado por um pequeno plano relâmpago de um olho no qual se espelha uma dessas explosões. Após esta apresentação neo-noir da cidade do futuro, entramos nos escritórios da Tyrell Corporation onde um replicante – um robot aparentemente humano – é submetido a um teste de Voight-kampff. As primeiras cenas de Blade Runner dão-nos as indicações temporais (2019), espaciais (Los Angeles) e o tema central do filme: distinguir humanos e replicantes. Deckart (Harrison Ford), que aparece pouco depois numa movimentada rua de Los Angeles, é um Blade Runner, um polícia especializado na caça aos replicantes que fogem das colónias “Off World” e regressam indevidamente à terra. O argumento do filme é adaptado da história de Philip K. Dick, Do Androids Dream of Electric Sheep?, uma desconstrução das noções de tecnologia, simulacro e identidade. Obviamente que há diferenças entre o filme e a história em que este se baseia. K. Dick valoriza as consequências ambientais do desenvolvimento tecnológico e a sobrevalorização da biologia natural, numa sociedade em que os andróides estão por todo o lado. Na adaptação de Scott, os replicantes (andróides) estão proibidos na terra, depois de um motim, que origina não só a proibição, mas a introdução de uma longevidade máxima de quatro anos, impedindo-os de criarem emoções e memórias. Este é, aliás, o motivo pelo qual, Zhora (Joanna Cassidy), Pris (Daryl Hannah) e Roy (Rutger Hauer) regressam à terra: tentar junto do criador alargar a sua longevidade. No entanto, o eco-desastre está presente no caos urbano, no ambiente poluído, na densidade populacional e na industrialização pesada que constituem o cenário do filme. A questão central do filme é, antes de mais, a natureza do humano num futuro pós-moderno, no qual a hibridação homem-máquina, a engenharia genética e a nanotecnologia atingem todo o seu potencial, recriando seres naturais que o desenvolvimento tecnológico erradicou da terra em clara ruptura ambiental. A cena chave que introduz esta questão está dada no diálogo entre Deckard e Tyrell, o criador do novo Nexus 6, após o teste a Rachel (Sean Young):

Tyrell: Commerce is our goal here at Tyrell. More human than human is our motto. Rachel is an experiment, nothing more. We began to recognize in them a strange obsession. After all, they are emotionally inexperienced with only a few years in which to store up the experiences which you and I take for granted. If we give them the past, we create a cushion or pillow for their emotions and consequently we can control them better.
Deckard: Memories. You’re talking about memories.


No fundo, falamos de memória e identidade, de um passado que humaniza os replicantes mas também de todo o aparato técnico que manipula a percepção: a imagem, a fotografia, o filme e a simulação de um passado. Não por acaso, existem vários planos que focam os olhos e a visão. A diferença entre a aparência e a essência dos andróides estabelece-se exactamente na memória e na identidade. O simples “penso, logo existo”, que distingue o ser humano de todo o mundo animal, poderia ter-se tornado em Blade Runner em “sinto, logo sou humano”. Mas como podemos observar nas frases finais de Roy, também esse moto se pode aplicar aos replicantes.
Blade Runner é, a par do romance de William Gibson, Neuromancer, um dos marcos iniciais do género cyberpunk na ficção científica. Quando foi lançado em 1982, Blade Runner foi um fracasso comercial tendo sido rapidamente retirado das salas. Foi através do circuito de aluguer de vídeo e da exibição da televisão que Blade Runner se transformou num filme de culto, tendo sido eleito recentemente como um dos filmes mais importantes do século XX. Envolvido em polémica, e sem o acordo do realizador, a Warner Bros lançou em 1991 a versão do Director’s Cut que retira a voz off e modifica o final. Para Dezembro deste ano está previsto o lançamento da versão Director´s Cut[1], desta vez com o acordo de Ridley Scott.




[1] O “Final Cut” de Blade Runner passou a estar disponível num DVD de dois discos, nas edições Castello Lopes, a partir de Dezembro de 2007. No disco 1, encontra-se a cópia do filme restaurada, assim como sequências novas, efeitos especiais e comentários de Ridley Scott; no disco 2, encontram-se cenas que tinham sido excluídas e um documentário sobre o “making of de Blade Runner”.

7ª SESSÃO - La Nuit Américaine

Realização: François Truffaut
Ano: 1973
Duração: 112 min.

Exibido a 3 de Dezembro de 2007


Debate conduzido por Nelson Guerreiro
Tema do debate : POR DETRÁS DA CÂMARA: O PROCESSO CRIATIVO

“Tranquilize-se quem deseja ter vivido, enquanto vivia,
que a vida dir-lhe-á como isso se faz.”
Samuel Beckett, O Inominável

A escolha deste filme deveu-se, em primeiro lugar, à minha profunda admiração pela obra imensa de François Truffaut. Em segundo lugar, porque este filme nos faz aceder aos seus modos de produção cinematográfica de um ponto de vista funcional, mas, sobretudo, à forma como Truffaut vê o (seu) cinema, num gesto intensivo pelo que declara o seu amor incondicional à 7ª arte. Não abdicando de apresentar os motivos que o encaminharam à realização de filmes, entrecorta a acção em flashbacks, com as relembranças do seu alter-ego, Ferrand da sua infância, quando roubava posters dos filmes em cartaz (entre eles, Citizen Kane, de Orson Welles). Travessuras que o próprio Truffaut confessou que fazia.

Por outro lado, La Nuit Américaine é um dos filmes que melhor retrata as peripécias que se passam no plateau e na rodagem de um filme. Está lá tudo, às escâncaras. Desnudamento imperativo. Abertura máxima e pessoal, através da qual nada fica por mostrar. Num retrato, por vezes, hiper-realista, Truffaut faz de um making-of de um filme fictício Je vous presente Pamela a linha narrativa, catalogando, de forma livre – mas em forma de tese -, os problemas de bastidores passíveis de ocorrer no processo executivo de um filme: os conflitos com e entre os actores, os imprevistos, os estouros de cronograma e as pressões externas.

De forma caricatural, estilizando a seu bel-prazer a partir de uma agilização da sua experiência, apresenta-nos o dia-a-dia das filmagens com todas as atribulações de uma arte que depende, acima de tudo, do domínio da técnica. Porém, e no confronto dessa matriz essencial, embate com a precariedade e imprevisibilidade da matéria humana, lembra-nos que o cinema assenta também, em termos operativos, no colectivo – logo, tendente à falha, em que a sua prática também pressupõe a resolução de problemas fora da sua estrutura, através de soluções improvisadas para concluir o projecto a tempo. Por exemplo, furtar um vaso do hotel onde o elenco estava hospedado para compor o cenário da casa de "Pamela". Ou como lidar com um actor (protagonista) que fica deprimido porque a sua noiva sai com um duplo, ou como lidar com uma actriz, repescada a partir da sua aura fora de validade, que se entregou à bebida e que não se consegue lembrar das suas falas, entre muitas outras confusões, em relação às quais o realizador, como centro nevrálgico das operações, deve fazer tudo para contornar, até chegar à gravação de uma das cenas mais importantes do filme: aquela em que o dia deve ser transformado em noite artificialmente. A day for night, ou effetto notte (em italiano), ou noite americana (em português) – expressão, utilizada de forma titular, de origem americana, para definir aquele artifício que o cinema tem ao colocar filtros especiais na câmara para fazer noite quando ainda é dia.

Como se depreende, e do ponto de vista narrativo, a história é árida. Não podia ser de outra maneira, visto que estamos perante um filme, metalinguisticamente falando, dentro do cinema. Visto que estamos ora dentro, ora fora de campo, acedendo a algo que, geralmente, não nos é dado a ver e contrariando a missiva de que no cinema, tal como o próprio na pele de Ferrand o diz, “não há engarrafamentos, nem vazios, nem tempos mortos. Os filmes avançam como comboios na noite.” Afirmando que o cinema é, acima de tudo, a reunião de coisas, pessoas e paisagens que lhe servem de base, no fundo, a vida, a qual, em sua opinião, não costuma ser tão bem agenciada, Truffaut parece querer confirmar o ditado que diz que a vida não tem ensaio geral. Assim sendo, o que é mais importante: a vida ou os filmes? Resposta-tipo de Truffaut: …

Contudo, numa entrevista concedida em 1973, Truffaut dizia, com alguma ênfase, que, por pensar em cinema tantas horas por dia e há tantos anos, não conseguia deixar de comparar a vida e os filmes, e de lastimar que a vida é tão interessante, densa e intensa quanto as imagens; para acrescentar, algo timidamente, que a vida, apesar de tudo, lhe parecia mais importante. Mais como uma espécie de capitulação momentânea diante de um olhar social (como pode um filme significar mais do que a vida?) do que como expressão sincera da sua interioridade, a “concessão” de Truffaut a uma resposta mais “racional” é claramente desmentida pela sua filmografia. Ao vê-la, não restam dúvidas.

8ª SESSÃO - Belarmino

Realização: Fernando Lopes
Ano: 1964
Duração: 130 min.

Exibido a 6 de Dezembro de 2007


Convidado: Fernando Lopes
Debate conduzido por Maria Madalena Gonçalves
Tema do debate : NOS BASTIDORES DA REALIDADE


A sessão de hoje, dedicada ao visionamento de Belarmino, é uma sessão especial. Para além de irmos ver um filme documental que é um marco no nosso cinema, temos o privilégio e a honra de o podermos ver na companhia do seu realizador – Fernando Lopes – a quem desde já agradeço em nome dos estudantes da ESAD.CR, dos meus colegas, membros do PAR, e em meu próprio a forma espontânea e entusiasta com que aceitou de imediato o convite que lhe dirigi há algum tempo.

Fernando Lopes dispensa apresentações. Mas eu queria deixar, em especial aos estudantes de Cabo Verde aqui presentes e, em geral, a todos os estudantes mais jovens, duas brevíssimas palavras sobre o nosso convidado de hoje. Do seu longo e variado percurso, destacarei apenas o que se prende com as matérias que se ensinam na nossa Escola e com a sessão de hoje:

- Trabalhou na televisão no ano da sua inauguração (1957).
- Estudou em Inglaterra, na London Film School, entre 1959 e 1962.
- De regresso a Portugal, juntou-se à geração de realizadores que vinham da tradição cine-clubista: Paulo Rocha, António Pedro de Vasconcelos, João César Monteiro, entre outros.
- Em 1977 trabalhou com os melhores jornalistas da época (Joaquim Letria, José Júdice, António Mega Ferreira) no 2o Canal da RTP, que ajudou a criar.

Ao longo das várias décadas do recente século passado realizou inúmeros filmes e documentários. Como trabalho em documentário da década de 70, destaco:
- O Encoberto (1975) , dedicado à polémica estátua de D. Sebastião, em Lagos (da autoria de José Cutileiro); e Nacionalidade:Português (1972), por ser um trabalho infelizmente perdido, mas que foi feito em colaboração com o escritor Nuno Bragança.

E é aqui que eu quero chegar. Fernando Lopes realizou longas-metragens baseadas em romances de amigos e colegas seus que vêm do jornalismo, da reportagem e da literatura, quer dizer, da palavra escrita para ser lida. Ao lado do jornalismo e da reportagem, a literatura é uma referência central para a sua geração, que ele adapta ao cinema com grande rigor e sensibilidade.

Os títulos dos filmes mais emblemáticos falam desse encontro que se prolonga por várias décadas:
- Uma Abelha na Chuva (1971) é a adaptação do romance homónimo de Carlos de Oliveira;
- Crónica dos Bons Malandros (1983) é a adaptação do primeiro livro de Mário Zambujal;
- O Fio do Horizonte (1993) é a adaptação do romance do escritor italiano António Tabucchi;
- O Delfim (2002) é a adaptação do romance, com o mesmo título, de Cardoso Pires.

Nos trabalhos de maior fôlego, como estes, ou nos mais breves, Fernando Lopes deixa sempre a sua marca: qualidade e profissionalismo. Tornou-se, por isso, um dos mais prestigiados realizadores de cinema português. Sempre actual, vivo, presente o trabalho que hoje vamos ver pertence à geração de 60 – a do cinema novo português (coetânea da geração francesa da “nouvelle vague” e dos “Cahiers du Cinéma”) - mas Belarmino, sendo um filme de geração, não é um filme datado. Por isso o escolhi para integrar a programação deste Ciclo. É que ele é, simplesmente, o melhor documentário realizado em Portugal até hoje. Com mais de 40 anos (e uma ou outra cena à parte), é como se o tempo não tivesse passado por Belarmino. Jogo limpo, nenhum knock out. Belarmino é um marco, uma referência, um clássico.

Na ESAD.CR, sobretudo para quem nela estuda “som” e “imagem”, mas também “teatro” e “ fotografia”, é um exemplo a seguir por mais de uma razão. É, desde logo, um exemplo de como fazer bom cinema – do argumento à fotografia (assinada pelo grande Augusto Cabrita), da música aos efeitos sonoros, da escolha dos ‘actores’ ao texto que ‘dizem’. É, depois, um estudo magistral sobre coreografia dos gestos – quer humanos, quer físicos – estes, visíveis nos ângulos da câmara do realizador quando acompanha, com extremo rigor, o traçado da cidade, a arquitectura das fachadas, as ruas, as praças, os recantos, os cafés. É um estudo inédito, à época, sobre o ritmo da cidade e das pessoas dentro dela. É o melhor retrato social, psicológico, ideológico, cultural, político do Portugal cinzento dos anos 60 surpreendido num cidadão comum – Belarmino – e na narrativa que se constrói à sua volta: acima, de baixo, ao lado e dentro do discurso do próprio pugilista, daquilo que ele diz, da forma como o diz, e daquilo que não diz mas está lá. É uma lição sobre a montagem em cinema: ‘entre a palavra e a imagem’, para citar o tema do debate da sessão conduzida pela colega Susana Duarte quando, há dias, nos apresentou um documentário também excelente[i] no âmbito deste mesmo Ciclo. É, enfim, uma lição perfeita sobre a construção de narrativa em cinema-documental, sobre a construção de personagem em cinema-documental, sobre o enquadramento social da palavra em cinema-documental, em suma e rigorosamente, sobre a adaptação da palavra ao cinema em cinema-documental.
E, aqui, entra outra vez a literatura. Onde, dirão, se a palavra deste filme é a que circula entre um entrevistado (Belarmino) e um entrevistador (Baptista-Bastos)? Se é filme-documental? Através de um pequeno exemplo perceberão o que eu quero dizer: Baptista-Bastos refere, a dada altura, os golpes dolorosos que um pugilista recebe na “arcada supraciliar”. Belarmino comenta a observação de Baptista-Bastos referindo-se sempre a “arcádia supraciliar” – num achado digno do melhor Césariny, sem ter a consciência de, na forma errada de pronunciar a palavra, estar a evocar o planalto da Grécia que em poesia se tornou o símbolo da simplicidade pastoril. Este filme fala-nos, pela mão e pela sensibilidade estética e literária do seu realizador, também dessa simplicidade que nos anos 60 se confundia com analfabetismo, atraso e miséria.
Termino com a leitura do poema que Alexandre O’Neill dedicou a Belarmino um ano após a realização do filme, em 1965[ii]. Com este texto pretendo recordar outra das figuras gradas desta geração tão especial (a geração da década de todas as fermentações onde cinema, literatura, fotografia, imagem, música, arquitectura, vivência e consciência da urbe já dialogavam como hoje, mas de outra maneira) e, com as palavras de O’Neill, singelamente homenagear todos os belarminos de Lisboa - “homens vadios” - que foram os compagnons de route dos artistas-boémios desse tempo:

Amigos pensados: Belarmino

Tiveste jeito, como qualquer de nós,
e foste campeão, como qualquer de nós.

Que é a poesia mais que o boxe, não me dizes?
Também na poesia não se janta nada,
mas nem por isso somos infelizes.

Campeões com jeito
é nossa vocação, nosso trejeito.

Esperam de 1 a 10 que a gente, oxalá, não se levante
- e a gente levanta-se, pois pudera, sempre.

Mas do miudame levámos cada soco!
Achas que foi pouco?

Belarmino:
Quando ao tapete nos levar
A mofina,
Tu ficarás sem murro,
Eu ficarei sem rima,
Pugilista e poeta, campeões com jeito
E amadores da má vida.


Fernando Lopes, muito obrigada pelo seu Belarmino e por vir falar dele a uma plateia de jovens!

[i] Images of the World and Inscription of War, realizador Harun Farocki, 1988, Alemanha, 75 minutos. Passou na ESAD.CR no dia 26 de Novembro de 2007, às 18:30h, seguido de debate.
[ii] “Amigos Pensados: Belarmino” é um poema de Feira Cabisbaixa (1965). Consultar: O’Neill, A. (2000) Poesias Completas, Lisboa: Assírio & Alvim.

9ª SESSÃO - 2001: Odisseia no Espaço (et all.)

Realização: Stanley Kubrick
Ano: 1968
Duração: 141 min.


Exibido a 10 de Dezembro de 2007


Convidado: Sérgio Azevedo
Debate conduzido por Maria Madalena Gonçalves
Tema do debate : AS FORÇAS SIMBÓLICAS DA MÚSICA NO CINEMA


Estou particularmente feliz com o dia de hoje por ter sido possível concretizar o desejo de integrar neste Ciclo dedicado ao Cinema uma sessão onde se vai falar de música no cinema. Se nos lembrarmos que, nos seus primórdios, quando o cinema era mudo, os filmes se faziam acompanhar por um pianista que preenchia o silêncio com sons musicais, faz sentido ter uma sessão onde a música é tema de debate.

Mas estou feliz também e sobretudo por poder contar com Sérgio Azevedo nesta sessão. Ele deslocou-se expressamente à ESAD.CR para nos falar das “forças simbólicas da música” em excertos de vários filmes da sua escolha[i]. Sérgio Azevedo é um apaixonado por cinema e um entendido nesta matéria, além de ser um distinto compositor[ii], como se pode verificar na lista selectiva dos seus trabalhos impressa na folha em distribuição. Habituado a falar da relação entre cinema e música com os seus alunos na Escola Superior de Música de Lisboa, onde lecciona desde 1993, Sérgio Azevedo aceitou logo o meu convite e, por isso, lhe agradeço a disponibilidade tão gentilmente manifestada.

A sua presença entre nós oferece-nos a oportunidade de pensar com ele a relação música/cinema e, acima de tudo, a oportunidade de perceber melhor a importância da música na sua articulação com a imagem, tantas vezes injustamente ultrapassada pela força avassaladora e voraz desta que, em cinema, tende a levar tudo à sua frente. É importante que a nossa retina também oiça, e eu estou certa de que Sérgio Azevedo nos vai ajudar a preparar o salto para essa condição sinestésica - tão necessária à fruição mais completa do cinema enquanto 7a arte.

[i] Da lista que se segue, só houve tempo para visionar e comentar excertos dos filmes assinalados a negrito:
Kubrick: 2001, Odisseia no Espaço, 1968, GB, 141 min.
Kubrick: Eyes Wide Shut, 1999, US/UK, 152 min.
Kubrick: Paths of Glory, 1957, US, 86 min.
Kubrick: Barry Lyndon, 1975, GB, 187 min.
Kubrick: Laranja Mecânica, 1971, GB, 136 min.
H. Hook: Lord of the Flies, 1990, US, 90 min.
Cacoyannis: Zorba, o Grego, GR/US, 146 min.
Visconti: Morte em Veneza, 1971, IT,128 min.
Lynch: O Homem Elefante, 1980, US, 124 min.
Hitchcock: Vertigo, 1958, US, 128 min.
Hitchcock: Psico, 1960, US, 109 min.
Hitchcock: O homem que sabia demais, 1934, GB, 75 min.
Hitchcock: Os pássaros, 1963, US, 119 min.

[ii] OBRAS de Sérgio Azevedo (lista selectiva)
Monumentum pro Góra Kalwaria (4 clarinetes) 1992
Monodrama (cor de basset solo e 25 clarinetes) 1995
Coda (oboé solo, piano, viola, contrabaixo) 1997
Aspetto (quinteto de sopros) 1998
Atlas’s Journey (15 instrumentos) 1998
Keep Going (orquestra) 1998
Sequenza Prima (piano e quarteto de cordas) 2001
Sequenza Ultima (oboé solo e 10 instrumentos) 2001
Concertino (piano solo e 14 instrumentos) 2001
Concerto para Dois Pianos e Orquestra 2003
Sinfonietta Semplice (orquestra) 2004
Ariane dans son Labyrinthe (piano e quinteto de sopros) 2004
La Vera Storia d’Ulisse in Mare (orquestra) 2005
Berliner Trio (clarinete, piano, violoncelo) 2006
Concerto para Orquestra 2006
O Rouxinol do Imperador da China (ópera, vozes adultas e infantis, orquestra) 2007

10ª SESSÃO - Blow-up

Realização: Michelangelo Antonioni
Ano: 1966
Duração: 111 min.

Exibido a 13 de Dezembro de 2007



Debate conduzido por Luísa Soares de Oliveira
Tema do debate: CINEMA E REALIDADE


O debate desta sessão foi lançado entre os presentes a partir da referência ao texto de Julio Cortázar que inspirou o argumento do filme a Antonioni. Publicam-se aqui algumas passagens do conto do escritor argentino[1], que reflectem a temática enunciada no título:

[1] Excertos retirados de Julio Cortázar, Blow-up e outras histórias [s/d], Lisboa: Livros de Bolso Europa-América.

SESSÃO ABERTA DA ESCOLHA DOS ALUNOS - Good bye, Lenin!

11ª sessão - “Good Bye, Lenin!”

Realização: Wolfgang Becker
Ano: 2003
Duração: 118 min.

Exibido a 17 de Dezembro de 2007


Dentre uma lista de filmes propostos pelos alunos, foram seleccionados “para a final” Tuvalu, de Veit Helmer (1999) e Good bye, Lenin!, de Wolfgang Becker (2003). Por votação geral, foi escolhido o filme de W. Becker.

Nesta sessão não houve moderador. Os estudantes pediram que, desta vez, o debate decorresse sem tema fixo e sem ninguém a conduzi-lo para que as intervenções dos participantes pudessem ser feitas da forma mais livre possível, ao sabor do imprevisto e da espontaneidade.
Respeitando a vontade manifestada, os Cadernos PAR limitam-se a assinalar aqui o evento de maneira breve. O PAR aceitou, com agrado, a sugestão dos estudantes por ela corresponder inteiramente ao espírito da actividade, tanto no que diz respeito à liberdade de escolhas e independência de critérios, como à estreita e boa colaboração entre os estudantes e a equipa do PAR em matéria de acções culturais conjuntas.
Cabe talvez aqui uma nota referente ao êxito de todo o Ciclo, amplamente reconhecido pelos estudantes da ESAD.CR e demais participantes da Escola e público em geral. Todos os que tiveram oportunidade de assistir às sessões foram unânimes em reconhecer o interesse da iniciativa, pedindo “mais!”, já para o semestre seguinte.
Face ao êxito obtido, o PAR decidiu tornar este evento uma actividade regular da sua programação anual, pelo que o 1º semestre de cada ano lectivo será preenchido por um Ciclo de Cinema e Debate subordinado a um tema específico.

Podemos anunciar desde já o próximo Ciclo de Cinema e Debate na ESAD.CR, que será dedicado a 10 décadas de cinema - dos anos 10 a 2000. Fica assim a promessa do regresso e o apetite para “muito mais!”.

SESSÃO ABERTA À ESCOLHA DOS ALUNOS - Madagáscar

Madagáscar (animação, comédia), 2005.
Realização: Eric Darnell, Tom McGrath.
Argumento: Mark Burton, Billy Frolick, Eric Darnell, Tom McGrath.
Música: Hans Zimmer.
Produção: Dream Works Animation SKG/PDI .Co-produção: Theresa Cheng.

Moderador da sessão: Fernando Poeiras. Tema: “ver claro…”

“Uma comédia do pensamento”, M/6. Podia ser este o subtítulo, ou mesmo o título, de Madagáscar; se os seus criadores levassem “o” pensamento mais a sério. Felizmente isso não acontece. A tarefa de “intelectualizar” Madagáscar parece-nos divertidamente absurda, mas parece também que o humor não é irrisão suficiente para apresentar um filme neste contexto, ou para o comentar. Porquê esta escolha?
Só pensamos com o impulso de um afecto. Qual? Para a comédia o “amor” pelo conhecimento é apenas uma má farsa. A comédia estabelece uma relação, mais prática, entre o pensar e os jogos que inventamos para sobreviver. O órgão de pensamento privilegiado pelo humor, e também na vida quotidiana, é o bom senso. O bom senso adapta-nos ao útil, ao razoável, e a conviver com a “realidade” compartilhada. Do ponto de vista do bom senso, os jogos “cómicos” da sobrevivência são sobretudo “inadaptações”. Assim, há tantos motivos para rir quanto pessoas.
Algum pensamento acreditou conquistar a sua “pureza”, a sua “autonomia”, a sua “legalidade interna”, libertando-se do bom senso e do mundo, e daquela persistente “coisa” que se chama realidade. Pessoas deslocam-se a uma casa para aprender a pensar. Querem ser “profissionais” do pensamento: fechar os olhos e inventar “ideias”. Não as move nenhum “amor” à verdade. Há assuntos mais urgentes como os credores. Querem apenas fugir do mundo e adestrar uma das armas para sobreviver, a de que qualquer argumento serve. Na sua estratégia de fuga e de ataque, o pensamento “profissional” criou conflitos, que o obrigam novamente a fugir. Conflitos entre o “profissional” e o pensamento “mundano” (bom senso e senso comum), e entre a estupidez (a impotência de pensar) e o cinismo (a impotência oposta: conquistada a “liberdade” do pensamento o cinismo já não aguenta nenhum peso). Esta imagem do “pensamento”, e das suas personagens, é dada por Aristófanes nas “Nuvens”. Outra situação: as Nuvens estão baixas. Quatro animais, unidos numa amizade improvável, saem do seu “doméstico” zoo e iniciam uma hilariante viagem pelos “factos da vida”. As personagens movem-se num nevoeiro: os olhos estão abertos mas não se vê nada bem. (Acontece-me frequentemente.)
Apesar do bom senso ser (aparentemente) um órgão democraticamente distribuído, as comédias usam o bom senso de forma particular. O cómico existe na nossa vida mas a comédia precisa ser construída: 1º) Construção das peripécias. O tempo da comédia é o do infortúnio casual e não o do futuro previsível que o bom senso antecipa. A acção é a acção improvisada face às peripécias que o mundo vai generosamente fornecendo. (É preciso construir um ritmo divertido para a sucessão de desastres). 2º) Construção do lugar do espectador. Como o espectador é o fiel depositário do bom senso ele sabe mais, reconhece a situação (peripécia) em que foram lançadas as personagens sem saberem. Mas, nem sempre sabe mais do que as personagens: é preciso construir a montanha russa de sentimentos do espectador. 3º) Casting de caracteres que dramatizem conflitos interiores ao bom senso. Marty, Alex, Mellman e Gloria, um concentrado simpático da variedade de ilusões a desfazer pelo “real factual”: solipsismo, ideia fixa, confusão, ingenuidade, ignorância, alucinação, etc. Um acrobata da auto-ilusão (Juliano) debate-se com um peso-médio da sensatez (Maurício); ambos encabeçam uma comunidade histérica (governada pelo medo e pela esperança), e ainda um desnorteado pateta de peluche, sempre disponível para o papel de “sacrificável”. Um esquadrão de pinguins manipula a sua auto-apresentação (“sorrir e acenar”; o sonho de muitos nesta época em que o menor sinal de diferença real dá sempre lugar à reacção burgessa), e é o alto representante da “razão instrumental” (estratagemas e cálculos; o sonho de apenas alguns: espírito de missão contra a ordem do mundo). 4º) Não levar o bom senso demasiado a sério. O inimigo do pensamento quotidiano não é apenas externo (o “profissional”) é também interno: a sensatez quando se revela intolerável. A vitória das personagens sobre a realidade da sobrevivência, reconhecida como pura selvajaria, é um triunfo da liberdade de viver. Vitória sempre acompanhada pelo crescimento da alegria. 5º) Dar a tudo isto um aspecto variável e o ritmo delirante que esta animação permite construir.
O humor é um enigma: por um lado, é uma disposição para a agilidade lúdica necessária para pensar livremente; por outro lado, é sempre um acontecimento. Não há estratégia para o humor. Acontece: ou rimos, ou não rimos. Para terminar, uma palavra de alento aos mais sisudos, que - de facto - não viram Madagáscar. Há muitas maneiras de ter o olhar nebuloso: uma das mais divertidas, descobri agora, é estar à espera d’O pensamento. E ele nunca mais aparece, com a sua cátedra e óculos fundo de garrafa. Um pouco entediada com questões sobre O PENSAMENTO, Hannah Arendt, (que pensava por necessidade e desejo de real), atalha a conversa: “Não creio que possa haver seja que processo de pensamento for sem experiência. Todo o pensamento é re-pensamento: pensa depois da coisa. Não será assim?”