sexta-feira, 16 de outubro de 2009

5ª SESSÃO - Images of the world and inscription of war

Título original: Bilder der welt und Inschrift des Krieges
Realizador: Harun Farocki
Ano: 1988
Duração: 75 min.

Exibido a 26 de Novembro de 2007


Debate conduzido por Susana Duarte
Tema do debate : A MONTAGEM: ENTRE A PALAVRA E A IMAGEM


Imagens do mundo e a inscrição da guerra reúne aspectos cruciais da teoria e prática fílmica de Farocki. Nesta sua obra, há dois grupos de imagens fundamentais, retomadas em sucessivos reenquadramentos, que condensam as preocupações do filme, clarificando a convocação das outras séries de imagens: o das fotografias aéreas tiradas pelos bombardeiros aliados americanos, em 1944, e o correspondente ao álbum de Auschwitz, com fotografias tiradas por um SS, na rampa do campo, ambos produtos de uma tecnologia incorporada a uma maquinaria calculada de morte e aniquilação. Neles converge o que a banda de imagens e de palavra vai sublinhando e dando a ler através da alternância entre as imagens dos aparatos de medição (militares, científicos, industriais) e as imagens produzidas por esses meios, a saber, que o propósito de produção destas imagens-técnicas, prefigurado pela fotografia mas estendendo-se para além dela, independentemente dos seus fins científicos, militares, forenses, ou estéticos, foi não só registar e preservar, mas também ocultar e destruir.
Em Abril de 1944, pilotos americanos sobrevoam a Silésia à procura de uma fábrica de armamentos e registam fotografias de reconhecimento. De regresso a Inglaterra, os analistas identificam os alvos industriais, mas não vêem os telhados dos barracões e as câmaras de gás de Auschwitz. Nas fotografias aéreas de Auschwitz, em que o campo de extermínio na imagem só é visível em 1977, estamos perante imagens que se organizam em torno de uma zona cega, o que nos permite confirmar que “Imagens do mundo e a inscrição da guerra” é um filme sobre a manifestação de uma desadequação entre o olho e os dispositivos tecnológicos de visão, sobre a relação da visão natural com uma dimensão de opacidade e invisibilidade inscrita no visível artificialmente construído. A fotografia aérea é uma imagem-técnica. Apesar de ser um registo analógico aponta já, com o seu sistema em grelha, para o modo digital, como notou Vilém Flusser. Os seres humanos individuais ficam fora da grelha, e só o ornamento da sua existência de grupo fica registado: por exemplo, quando se alinham nos pátios para a selecção ou a chamada. Com efeito, a visibilidade permitida pelo alcance óptico da fotografia aérea esbarra com uma dissimulação muito mais radical do que a encetada pelo inimigo, para evitar, segundo uma expressão de Paul Virilio, que “o percebido seja sinónimo de imediatamente perdido” – aquela que resulta de uma incapacidade para ver o que a fotografia objectivamente contém, mas o olho não está preparado para reconhecer.
Farocki está interessado no modo como a câmara se tornou um elemento inseparável do equipamento destruição. O que é preservado na fotografia de Auschwitz é, ao mesmo tempo, uma imagem da destruição efectivamente consumada e da destruição que não chegou a ter lugar e que a poderia ter evitado.
O filme transmite, assim, um sentimento simultaneamente de perigo e de impotência em relação à óptica global de controlo do território: se a destruição implica que haja imagem, a destruição impedida dificilmente encontra a sua resposta numa terra sob vigilância, pois não há resposta, nem intervenção, ou crítica, em relação à destruição, quando o olhar e o pensamento são meras funções de máquinas que determinam, em articulação com a ciência e os fins militares, o que faz sentido investigar. Por sua vez, a imagem da mulher, na chegada ao campo, é tirada por um SS. Referir, como o faz a voz off do comentário, que a fotografia parece resultar de um impulso de fascinação – um homem que olha uma mulher e resgata a sua beleza para a posteridade – e, que, juntamente com o olhar da mulher, evoca o mundo exterior aos campos, permite ao filme sublinhar que o significado desta imagem se joga precisamente na distinção entre o curso normal da vida antes deste momento e as disposições que regulam o campo e ditarão a morte desta mulher. O dispositivo fotográfico que a fixa e preserva, no qual o fotógrafo se incui, não se distingue do campo de extermínio que entende a sua vida como supérflua. A fotografia inscreve-se na máquina burocrático-militar de destruição nazi. Vale a pena chamar aqui a atenção para a aproximação que Farocki estabelece, pela montagem, entre máquinas de visão usadas pelos carrascos e os equipamentos e autómatos de produção industrial, reforçando mais uma vez a disfunção entre o olho e o aparato: ambos são sem subjectividade, reduzidos a meros procedimentos de verificação técnica e operacional do funcionamento das coisas, eliminando o papel desempenhado pela visão natural no seu interior[i].

As duas imagens analisadas encarnam o modo técnico da escrita histórica e Farocki fá-las contrastar, já no final do filme, sobretudo através do comentário, com uma outra categoria de imagens, as que resultam da narração feita pelos dois prisioneiros, Rudolf Vra e Alfred Wetzler, que conseguiram fugir de Auschwitz e dão conta da realidade do campo através da sua condição física de testemunhas oculares. Esta aproximação final entre estes dois tipos de narração retroage sobre as várias direcções de movimento do filme que os dois grupos de imagens de Auschwitz representam ao mesmo tempo, e acrescenta-lhe mais uma, de contornos fundamentais: a fotografia, enquanto ferramenta matemática de conhecimento operacional e cálculo sobre o mundo, preconizadora das contemporâneas imagens numéricas, constitui um ponto de viragem na história humana, em que ambos os tipos de narração, ambos os tipos de imagens, se mostram inadequados. Não é possível optar por uma ou outra, pela imagem ou pela palavra, antes tem que se tentar estabelecer uma relação entre as duas. Esta ideia, reconhecemo-la em obra no próprio filme: o método de escrita de Farocki constitui-se a partir desta diferença, entre texto e imagem, sendo na sua manifestação que o filme acontece. Parafraseando o próprio realizador, uma imagem pode elucidar a outra, dar-lhe alguma validade experiencial; uma palavra - Aufklarung, por exemplo - transporta duplos e triplos sentidos, reúne várias coisas distintas, sugerindo, pelo seu potencial, conexões no mundo real, no material visual, na fábrica argumentativa do filme. No entanto, a linha dramatúrgica não está nem num sítio, nem no outro, está num outro lugar. Algures na mente de quem vê, nas imagens e representações mentais que a montagem, isto é, o entrelaçamento e os intervalos entre palavra e imagem, permite, nas conexões que são feitas de todas as combinações, na estrutura de loops que o filme propõe.[ii]



[i][i] A propósito do filme, Farocki afirma, numa entrevista a Thomas Elsaesser, que as imagens, fundamentais para a nossa cultura, estão a desaparecer: foram durante anos suportes perceptivos e conceptuais centrais e agora são uma mera concessão ao interface humano, pois as máquinas não precisam de imagens, podem fazer as suas visualizações e conceptualizações com cálculos matemáticos. Thomas Elsaesser aponta, por sua vez, para a possibilidade de ler aqui uma conexão histórica entre o fascismo e a realidade virtual: para ambos, o interface humano cai fora da equação enquanto irrelevância dispendiosa e embaraçosa. C.f. ELSSAESSER, Th. (1993), “Making the world superfluous: an interview with Harun Farocki”, in ELSSAESSER, T. (2004), Harun Farocki, Working on the sight-lines, Amsterdam: Amsterdam University Press: 177-189.

[ii] Ibid.
[iii][iii] A propósito do filme, Farocki afirma, numa entrevista a Thomas Elsaesser, que as imagens, fundamentais para a nossa cultura, estão a desaparecer: foram durante anos suportes perceptivos e conceptuais centrais e agora são uma mera concessão ao interface humano, pois as máquinas não precisam de imagens, podem fazer as suas visualizações e conceptualizações com cálculos matemáticos. Thomas Elsaesser aponta, por sua vez, para a possibilidade de ler aqui uma conexão histórica entre o fascismo e a realidade virtual: para ambos, o interface humano cai fora da equação enquanto irrelevância dispendiosa e embaraçosa. C.f. ELSSAESSER, Th. (1993), “Making the world superfluous: an interview with Harun Farocki”, in ELSSAESSER, T. (2004), Harun Farocki, Working on the sight-lines, Amsterdam: Amsterdam University Press: 177-189.
[iv] Ibid.