sexta-feira, 16 de outubro de 2009

SESSÃO ABERTA À ESCOLHA DOS ALUNOS - Madagáscar

Madagáscar (animação, comédia), 2005.
Realização: Eric Darnell, Tom McGrath.
Argumento: Mark Burton, Billy Frolick, Eric Darnell, Tom McGrath.
Música: Hans Zimmer.
Produção: Dream Works Animation SKG/PDI .Co-produção: Theresa Cheng.

Moderador da sessão: Fernando Poeiras. Tema: “ver claro…”

“Uma comédia do pensamento”, M/6. Podia ser este o subtítulo, ou mesmo o título, de Madagáscar; se os seus criadores levassem “o” pensamento mais a sério. Felizmente isso não acontece. A tarefa de “intelectualizar” Madagáscar parece-nos divertidamente absurda, mas parece também que o humor não é irrisão suficiente para apresentar um filme neste contexto, ou para o comentar. Porquê esta escolha?
Só pensamos com o impulso de um afecto. Qual? Para a comédia o “amor” pelo conhecimento é apenas uma má farsa. A comédia estabelece uma relação, mais prática, entre o pensar e os jogos que inventamos para sobreviver. O órgão de pensamento privilegiado pelo humor, e também na vida quotidiana, é o bom senso. O bom senso adapta-nos ao útil, ao razoável, e a conviver com a “realidade” compartilhada. Do ponto de vista do bom senso, os jogos “cómicos” da sobrevivência são sobretudo “inadaptações”. Assim, há tantos motivos para rir quanto pessoas.
Algum pensamento acreditou conquistar a sua “pureza”, a sua “autonomia”, a sua “legalidade interna”, libertando-se do bom senso e do mundo, e daquela persistente “coisa” que se chama realidade. Pessoas deslocam-se a uma casa para aprender a pensar. Querem ser “profissionais” do pensamento: fechar os olhos e inventar “ideias”. Não as move nenhum “amor” à verdade. Há assuntos mais urgentes como os credores. Querem apenas fugir do mundo e adestrar uma das armas para sobreviver, a de que qualquer argumento serve. Na sua estratégia de fuga e de ataque, o pensamento “profissional” criou conflitos, que o obrigam novamente a fugir. Conflitos entre o “profissional” e o pensamento “mundano” (bom senso e senso comum), e entre a estupidez (a impotência de pensar) e o cinismo (a impotência oposta: conquistada a “liberdade” do pensamento o cinismo já não aguenta nenhum peso). Esta imagem do “pensamento”, e das suas personagens, é dada por Aristófanes nas “Nuvens”. Outra situação: as Nuvens estão baixas. Quatro animais, unidos numa amizade improvável, saem do seu “doméstico” zoo e iniciam uma hilariante viagem pelos “factos da vida”. As personagens movem-se num nevoeiro: os olhos estão abertos mas não se vê nada bem. (Acontece-me frequentemente.)
Apesar do bom senso ser (aparentemente) um órgão democraticamente distribuído, as comédias usam o bom senso de forma particular. O cómico existe na nossa vida mas a comédia precisa ser construída: 1º) Construção das peripécias. O tempo da comédia é o do infortúnio casual e não o do futuro previsível que o bom senso antecipa. A acção é a acção improvisada face às peripécias que o mundo vai generosamente fornecendo. (É preciso construir um ritmo divertido para a sucessão de desastres). 2º) Construção do lugar do espectador. Como o espectador é o fiel depositário do bom senso ele sabe mais, reconhece a situação (peripécia) em que foram lançadas as personagens sem saberem. Mas, nem sempre sabe mais do que as personagens: é preciso construir a montanha russa de sentimentos do espectador. 3º) Casting de caracteres que dramatizem conflitos interiores ao bom senso. Marty, Alex, Mellman e Gloria, um concentrado simpático da variedade de ilusões a desfazer pelo “real factual”: solipsismo, ideia fixa, confusão, ingenuidade, ignorância, alucinação, etc. Um acrobata da auto-ilusão (Juliano) debate-se com um peso-médio da sensatez (Maurício); ambos encabeçam uma comunidade histérica (governada pelo medo e pela esperança), e ainda um desnorteado pateta de peluche, sempre disponível para o papel de “sacrificável”. Um esquadrão de pinguins manipula a sua auto-apresentação (“sorrir e acenar”; o sonho de muitos nesta época em que o menor sinal de diferença real dá sempre lugar à reacção burgessa), e é o alto representante da “razão instrumental” (estratagemas e cálculos; o sonho de apenas alguns: espírito de missão contra a ordem do mundo). 4º) Não levar o bom senso demasiado a sério. O inimigo do pensamento quotidiano não é apenas externo (o “profissional”) é também interno: a sensatez quando se revela intolerável. A vitória das personagens sobre a realidade da sobrevivência, reconhecida como pura selvajaria, é um triunfo da liberdade de viver. Vitória sempre acompanhada pelo crescimento da alegria. 5º) Dar a tudo isto um aspecto variável e o ritmo delirante que esta animação permite construir.
O humor é um enigma: por um lado, é uma disposição para a agilidade lúdica necessária para pensar livremente; por outro lado, é sempre um acontecimento. Não há estratégia para o humor. Acontece: ou rimos, ou não rimos. Para terminar, uma palavra de alento aos mais sisudos, que - de facto - não viram Madagáscar. Há muitas maneiras de ter o olhar nebuloso: uma das mais divertidas, descobri agora, é estar à espera d’O pensamento. E ele nunca mais aparece, com a sua cátedra e óculos fundo de garrafa. Um pouco entediada com questões sobre O PENSAMENTO, Hannah Arendt, (que pensava por necessidade e desejo de real), atalha a conversa: “Não creio que possa haver seja que processo de pensamento for sem experiência. Todo o pensamento é re-pensamento: pensa depois da coisa. Não será assim?”