sexta-feira, 16 de outubro de 2009

7ª SESSÃO - La Nuit Américaine

Realização: François Truffaut
Ano: 1973
Duração: 112 min.

Exibido a 3 de Dezembro de 2007


Debate conduzido por Nelson Guerreiro
Tema do debate : POR DETRÁS DA CÂMARA: O PROCESSO CRIATIVO

“Tranquilize-se quem deseja ter vivido, enquanto vivia,
que a vida dir-lhe-á como isso se faz.”
Samuel Beckett, O Inominável

A escolha deste filme deveu-se, em primeiro lugar, à minha profunda admiração pela obra imensa de François Truffaut. Em segundo lugar, porque este filme nos faz aceder aos seus modos de produção cinematográfica de um ponto de vista funcional, mas, sobretudo, à forma como Truffaut vê o (seu) cinema, num gesto intensivo pelo que declara o seu amor incondicional à 7ª arte. Não abdicando de apresentar os motivos que o encaminharam à realização de filmes, entrecorta a acção em flashbacks, com as relembranças do seu alter-ego, Ferrand da sua infância, quando roubava posters dos filmes em cartaz (entre eles, Citizen Kane, de Orson Welles). Travessuras que o próprio Truffaut confessou que fazia.

Por outro lado, La Nuit Américaine é um dos filmes que melhor retrata as peripécias que se passam no plateau e na rodagem de um filme. Está lá tudo, às escâncaras. Desnudamento imperativo. Abertura máxima e pessoal, através da qual nada fica por mostrar. Num retrato, por vezes, hiper-realista, Truffaut faz de um making-of de um filme fictício Je vous presente Pamela a linha narrativa, catalogando, de forma livre – mas em forma de tese -, os problemas de bastidores passíveis de ocorrer no processo executivo de um filme: os conflitos com e entre os actores, os imprevistos, os estouros de cronograma e as pressões externas.

De forma caricatural, estilizando a seu bel-prazer a partir de uma agilização da sua experiência, apresenta-nos o dia-a-dia das filmagens com todas as atribulações de uma arte que depende, acima de tudo, do domínio da técnica. Porém, e no confronto dessa matriz essencial, embate com a precariedade e imprevisibilidade da matéria humana, lembra-nos que o cinema assenta também, em termos operativos, no colectivo – logo, tendente à falha, em que a sua prática também pressupõe a resolução de problemas fora da sua estrutura, através de soluções improvisadas para concluir o projecto a tempo. Por exemplo, furtar um vaso do hotel onde o elenco estava hospedado para compor o cenário da casa de "Pamela". Ou como lidar com um actor (protagonista) que fica deprimido porque a sua noiva sai com um duplo, ou como lidar com uma actriz, repescada a partir da sua aura fora de validade, que se entregou à bebida e que não se consegue lembrar das suas falas, entre muitas outras confusões, em relação às quais o realizador, como centro nevrálgico das operações, deve fazer tudo para contornar, até chegar à gravação de uma das cenas mais importantes do filme: aquela em que o dia deve ser transformado em noite artificialmente. A day for night, ou effetto notte (em italiano), ou noite americana (em português) – expressão, utilizada de forma titular, de origem americana, para definir aquele artifício que o cinema tem ao colocar filtros especiais na câmara para fazer noite quando ainda é dia.

Como se depreende, e do ponto de vista narrativo, a história é árida. Não podia ser de outra maneira, visto que estamos perante um filme, metalinguisticamente falando, dentro do cinema. Visto que estamos ora dentro, ora fora de campo, acedendo a algo que, geralmente, não nos é dado a ver e contrariando a missiva de que no cinema, tal como o próprio na pele de Ferrand o diz, “não há engarrafamentos, nem vazios, nem tempos mortos. Os filmes avançam como comboios na noite.” Afirmando que o cinema é, acima de tudo, a reunião de coisas, pessoas e paisagens que lhe servem de base, no fundo, a vida, a qual, em sua opinião, não costuma ser tão bem agenciada, Truffaut parece querer confirmar o ditado que diz que a vida não tem ensaio geral. Assim sendo, o que é mais importante: a vida ou os filmes? Resposta-tipo de Truffaut: …

Contudo, numa entrevista concedida em 1973, Truffaut dizia, com alguma ênfase, que, por pensar em cinema tantas horas por dia e há tantos anos, não conseguia deixar de comparar a vida e os filmes, e de lastimar que a vida é tão interessante, densa e intensa quanto as imagens; para acrescentar, algo timidamente, que a vida, apesar de tudo, lhe parecia mais importante. Mais como uma espécie de capitulação momentânea diante de um olhar social (como pode um filme significar mais do que a vida?) do que como expressão sincera da sua interioridade, a “concessão” de Truffaut a uma resposta mais “racional” é claramente desmentida pela sua filmografia. Ao vê-la, não restam dúvidas.