sexta-feira, 16 de outubro de 2009

8ª SESSÃO - Belarmino

Realização: Fernando Lopes
Ano: 1964
Duração: 130 min.

Exibido a 6 de Dezembro de 2007


Convidado: Fernando Lopes
Debate conduzido por Maria Madalena Gonçalves
Tema do debate : NOS BASTIDORES DA REALIDADE


A sessão de hoje, dedicada ao visionamento de Belarmino, é uma sessão especial. Para além de irmos ver um filme documental que é um marco no nosso cinema, temos o privilégio e a honra de o podermos ver na companhia do seu realizador – Fernando Lopes – a quem desde já agradeço em nome dos estudantes da ESAD.CR, dos meus colegas, membros do PAR, e em meu próprio a forma espontânea e entusiasta com que aceitou de imediato o convite que lhe dirigi há algum tempo.

Fernando Lopes dispensa apresentações. Mas eu queria deixar, em especial aos estudantes de Cabo Verde aqui presentes e, em geral, a todos os estudantes mais jovens, duas brevíssimas palavras sobre o nosso convidado de hoje. Do seu longo e variado percurso, destacarei apenas o que se prende com as matérias que se ensinam na nossa Escola e com a sessão de hoje:

- Trabalhou na televisão no ano da sua inauguração (1957).
- Estudou em Inglaterra, na London Film School, entre 1959 e 1962.
- De regresso a Portugal, juntou-se à geração de realizadores que vinham da tradição cine-clubista: Paulo Rocha, António Pedro de Vasconcelos, João César Monteiro, entre outros.
- Em 1977 trabalhou com os melhores jornalistas da época (Joaquim Letria, José Júdice, António Mega Ferreira) no 2o Canal da RTP, que ajudou a criar.

Ao longo das várias décadas do recente século passado realizou inúmeros filmes e documentários. Como trabalho em documentário da década de 70, destaco:
- O Encoberto (1975) , dedicado à polémica estátua de D. Sebastião, em Lagos (da autoria de José Cutileiro); e Nacionalidade:Português (1972), por ser um trabalho infelizmente perdido, mas que foi feito em colaboração com o escritor Nuno Bragança.

E é aqui que eu quero chegar. Fernando Lopes realizou longas-metragens baseadas em romances de amigos e colegas seus que vêm do jornalismo, da reportagem e da literatura, quer dizer, da palavra escrita para ser lida. Ao lado do jornalismo e da reportagem, a literatura é uma referência central para a sua geração, que ele adapta ao cinema com grande rigor e sensibilidade.

Os títulos dos filmes mais emblemáticos falam desse encontro que se prolonga por várias décadas:
- Uma Abelha na Chuva (1971) é a adaptação do romance homónimo de Carlos de Oliveira;
- Crónica dos Bons Malandros (1983) é a adaptação do primeiro livro de Mário Zambujal;
- O Fio do Horizonte (1993) é a adaptação do romance do escritor italiano António Tabucchi;
- O Delfim (2002) é a adaptação do romance, com o mesmo título, de Cardoso Pires.

Nos trabalhos de maior fôlego, como estes, ou nos mais breves, Fernando Lopes deixa sempre a sua marca: qualidade e profissionalismo. Tornou-se, por isso, um dos mais prestigiados realizadores de cinema português. Sempre actual, vivo, presente o trabalho que hoje vamos ver pertence à geração de 60 – a do cinema novo português (coetânea da geração francesa da “nouvelle vague” e dos “Cahiers du Cinéma”) - mas Belarmino, sendo um filme de geração, não é um filme datado. Por isso o escolhi para integrar a programação deste Ciclo. É que ele é, simplesmente, o melhor documentário realizado em Portugal até hoje. Com mais de 40 anos (e uma ou outra cena à parte), é como se o tempo não tivesse passado por Belarmino. Jogo limpo, nenhum knock out. Belarmino é um marco, uma referência, um clássico.

Na ESAD.CR, sobretudo para quem nela estuda “som” e “imagem”, mas também “teatro” e “ fotografia”, é um exemplo a seguir por mais de uma razão. É, desde logo, um exemplo de como fazer bom cinema – do argumento à fotografia (assinada pelo grande Augusto Cabrita), da música aos efeitos sonoros, da escolha dos ‘actores’ ao texto que ‘dizem’. É, depois, um estudo magistral sobre coreografia dos gestos – quer humanos, quer físicos – estes, visíveis nos ângulos da câmara do realizador quando acompanha, com extremo rigor, o traçado da cidade, a arquitectura das fachadas, as ruas, as praças, os recantos, os cafés. É um estudo inédito, à época, sobre o ritmo da cidade e das pessoas dentro dela. É o melhor retrato social, psicológico, ideológico, cultural, político do Portugal cinzento dos anos 60 surpreendido num cidadão comum – Belarmino – e na narrativa que se constrói à sua volta: acima, de baixo, ao lado e dentro do discurso do próprio pugilista, daquilo que ele diz, da forma como o diz, e daquilo que não diz mas está lá. É uma lição sobre a montagem em cinema: ‘entre a palavra e a imagem’, para citar o tema do debate da sessão conduzida pela colega Susana Duarte quando, há dias, nos apresentou um documentário também excelente[i] no âmbito deste mesmo Ciclo. É, enfim, uma lição perfeita sobre a construção de narrativa em cinema-documental, sobre a construção de personagem em cinema-documental, sobre o enquadramento social da palavra em cinema-documental, em suma e rigorosamente, sobre a adaptação da palavra ao cinema em cinema-documental.
E, aqui, entra outra vez a literatura. Onde, dirão, se a palavra deste filme é a que circula entre um entrevistado (Belarmino) e um entrevistador (Baptista-Bastos)? Se é filme-documental? Através de um pequeno exemplo perceberão o que eu quero dizer: Baptista-Bastos refere, a dada altura, os golpes dolorosos que um pugilista recebe na “arcada supraciliar”. Belarmino comenta a observação de Baptista-Bastos referindo-se sempre a “arcádia supraciliar” – num achado digno do melhor Césariny, sem ter a consciência de, na forma errada de pronunciar a palavra, estar a evocar o planalto da Grécia que em poesia se tornou o símbolo da simplicidade pastoril. Este filme fala-nos, pela mão e pela sensibilidade estética e literária do seu realizador, também dessa simplicidade que nos anos 60 se confundia com analfabetismo, atraso e miséria.
Termino com a leitura do poema que Alexandre O’Neill dedicou a Belarmino um ano após a realização do filme, em 1965[ii]. Com este texto pretendo recordar outra das figuras gradas desta geração tão especial (a geração da década de todas as fermentações onde cinema, literatura, fotografia, imagem, música, arquitectura, vivência e consciência da urbe já dialogavam como hoje, mas de outra maneira) e, com as palavras de O’Neill, singelamente homenagear todos os belarminos de Lisboa - “homens vadios” - que foram os compagnons de route dos artistas-boémios desse tempo:

Amigos pensados: Belarmino

Tiveste jeito, como qualquer de nós,
e foste campeão, como qualquer de nós.

Que é a poesia mais que o boxe, não me dizes?
Também na poesia não se janta nada,
mas nem por isso somos infelizes.

Campeões com jeito
é nossa vocação, nosso trejeito.

Esperam de 1 a 10 que a gente, oxalá, não se levante
- e a gente levanta-se, pois pudera, sempre.

Mas do miudame levámos cada soco!
Achas que foi pouco?

Belarmino:
Quando ao tapete nos levar
A mofina,
Tu ficarás sem murro,
Eu ficarei sem rima,
Pugilista e poeta, campeões com jeito
E amadores da má vida.


Fernando Lopes, muito obrigada pelo seu Belarmino e por vir falar dele a uma plateia de jovens!

[i] Images of the World and Inscription of War, realizador Harun Farocki, 1988, Alemanha, 75 minutos. Passou na ESAD.CR no dia 26 de Novembro de 2007, às 18:30h, seguido de debate.
[ii] “Amigos Pensados: Belarmino” é um poema de Feira Cabisbaixa (1965). Consultar: O’Neill, A. (2000) Poesias Completas, Lisboa: Assírio & Alvim.